A
Educação para o Outro e a Educação contra o Outro
Paulo Volker
filósofo e educador
pvolker@uol.com.br
Nas savanas da África, nos idos
do Paleolítico inferior, quando o chopper (um raspador de pedra) era a nossa
mais moderna tecnologia, nosso cérebro tinha acabado de vencer o salto triplo
para ultrapassar a barreira dos 1500 cm cúbicos de volume – um fato
espetacular. Com isso deu-nos as vantagens do funcionamento do neocórtex dos
lobos frontais, temporais, parietais, que se encarregam de registrar
informações, envio de ordens precisas, arquivo de múltiplas recordações,
reutilização de experiências passadas, centro de associações lógicas e
complexas; nos deu o isocórtex homotípico, encarregado da ação refletida, do
conhecimento, da memória, da linguagem e da faculdade de previsão. Com todo
esse aparato, tivemos condições de elaborar todas as características
formadoras da cultura, a partir de uma essência básica: o espírito de
colaboração.
Quando falamos de "espírito
de colaboração", estamos dando ênfase a um conjunto de valores que
constituem essa atitude primária do humano de se entender como resultado do
encontro e da convivência com os outros humanos. É uma atitude primária, no
sentido de antecessora, primeira, anterior a todas as outras. A sobrevivência
do humano naquelas savanas só foi possível pela vida em conjunto, solidária,
afetiva, colaborativa e comunitária. Podem elaborar teorias e mais teorias
sobre a história humana, mas ninguém eliminará o fato da existência desse
"espírito de colaboração". A teoria da luta de classes, que
enfatiza o conflito como "motor da história", não passa de uma vesga
deturpação do fato original, afinal, desloca a colaboração para o interior
das classes, travestida de "consciência de classe".
Pois graças a essa com-vivência,
lá foi o humano pelas dobras do tempo, aproveitando de forma espetacular todas
as potencialidades do "estar junto" e do "fazer junto". Sua
natureza é tão voltada para o outro, que é a única espécie que faz o amor
frontal, ato biológico e amoroso de aconchego do casal.
Desse aconchego saíram as
culturas, as línguas, as civilizações. O salto para as terras, os mares e os
espaços. A busca do universo interior, com suas complexas extensões, pari
passu, com as aventuras no universo exterior e suas colossais vastidões.
Finalmente, eis o humano, na sua
saga em busca de si mesmo, postado em uma sala de aula, frente às construções
simbólicas que a compõem, como o quadro negro, as carteiras, lápis, borracha
e o livro. O dia é aberto pelo professor, que fala de competição, de luta, de
sucesso, da necessidade de muito estudo para se conseguir um emprego, quando
tantos outros estarão lutando também por ele.
Nesse momento, algo como um
centauro aparece na frente desse nosso aluno, igual a tanto milhares de jovens
que passam a ouvir essa ladainha dos mais velhos e acabam tomando-a como
verdade. Esse centauro que surge, metade homem, metade animal, diz exatamente do
inverso que caracteriza toda a epopéia humana. É o caos, o monstruoso, o
teratológico. É a entropia, a desorganização, o descomedimento, a loucura.
Personagem que sempre aflora na história humana, como se fosse o contraponto de
todo o seu brilho. Nesse momento tomamos contato com a sombra que não nos
larga. Se, através dos séculos, representamos como expressão máxima da nossa
capacidade a convivência, nunca deixamos de vislumbrar o nosso contrário,
aguerra de todos contra todos. Essa forma deturpada de vida, onde cada um
objetiva prejudicar os outros em função dos seus interesses particulares pode
nos iludir como sendo a causa do nosso sucesso, da nossa sobrevivência e a
solução para o nosso futuro.
Mas os escândalos que tomam as
manchetes dos nossos jornais nos mostram outra história. Fatos escandalosos,
absurdos, horrorosos são expressão desse mundo de luta de todos contra todos.
Eles se mostram como ataques dolorosos à nossa essência humana, que se
constituiu na esfera da convivência, tentando sempre isolar e evitar esse tipo
de guerra e terror. Agora, na altura do terceiro milênio, cá estamos,
sociedade humana, vivendo aquilo que nos nega como sociedade, lutando para não
tomarmos esses fatos como comuns, próprios ou triviais, enquanto muitos dizem
que sim – "sempre foi assim ...".
Não são. Não podemos nunca
colocá-los como corriqueiros, porque não são. Todaguerra é um fato
espetacular, uma tragédia, um lesa-humanidade, porque nega a essência do que
somos, não como possuidores de uma nacionalidade, não como contemporâneos,
mas como humanos. E é também na escola que essa convicção se assenta, se
firma, se enraíza. É nela que uma educação para o outro, para com o outro
deve se realizar. Do contrário, a própria escola, quando educa para a guerra,
passa a vivenciar, como realidade do seu dia a dia, todas as lições que
conseguiu ministrar.
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