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libros en las vallas metálicas

 

Criaturas

Luís Giffoni
Escritor. Tem 15 livros publicados e já recebeu premiações da
APCA-Associação Paulista de Críticos de Arte, Bienal Nestlé de Literatura,
Prêmio Nacional de Romance e de Contos Cidade de Belo Horizonte e do Prêmio
Jabuti de Romance. Mora em Belo Horizonte.
email: giffonis@zaz.com.br

 

Mato-o com freqüência, por precaução não o enterro. Enquanto esfria sobre a escrivaninha, guarda nos lábios o sarcasmo de quem ainda me derrotará: meu arrependimento tarda, nunca falha. Quando o ressuscito, desafia-me, fico irritado, mato-o. Tem sido assim desde que o criei.

Começou personagem secundário, mais meio que fim, agora luta pelo papel principal. Sem pedir licença, intromete-se na escrita: acorda-me de madrugada, suprime parágrafos, impõe acréscimos, abocanha espaços, agiganta-se.

Por outro lado, detecta excessos, descobre atalhos, revela peculiaridades alheias. Sua irreverência e ironia tornam a obra mais palatável, dão recados que hesito apregoar. A qualquer cochilo, entretanto, assume o enredo, viro copista de seus monólogos.

Ontem, durante o entrevero diário, liquidei-o de vez, rasguei-o em pedacinhos, pus o lixo num canto. De volta ao trabalho, para minha surpresa escrevi muito, até tarde da noite. Em comemoração, bebi pela produção e pelo aniquilamento do palpiteiro. A caminho da cama, pisoteei seus restos. Um excesso? Sim, um excesso. De satisfação. Libertara-me.

Ao reler a história, quanta mediocridade! Faltavam arrojo e verve, faltava a assinatura do tirano. Pela enésima vez, sou obrigado a ressuscitá-lo. Rendo-me. Entrego-lhe a obra, permito que a infeste com seu cheiro, seu discurso, sua personalidade. O estrelato lhe faz justiça. Ele venceu a batalha, contudo não perdi a guerra.

Daqui a pouco, sobre a escrivaninha, com braços e pernas cruzados escancarará o risinho atrevido, iniciará o ditado. Sem opor resistência, mero instrumento, anotarei suas palavras até a última linha.

No ponto final, preso na própria trama, livro-me dele. Livro pronto, vítima do próprio papel, o personagem perturba os outros. Então estarei livre para criar.