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A ESSÊNCIA DA EXPERIÊNCIA CRIATIVA
Judite Wey
Consultora em criatividade
jfwey@uol.com.br

Todas as pessoas são capazes de improvisar, inventar e soltar as asas da sua imaginação. Aprendemos através da experiência e podemos afirmar que ninguém ensina nada a ninguém. É assim tanto com a criança que se movimenta inicialmente chutando o ar, e que depois engatinha e sai andando, como para o cientista com suas equações super complexas e abstratas.

Trabalhar com pessoas em situações desafiadoras e por vezes ambíguas pressupõe acreditar na sua capacidade de assimilação do contexto (o que está acontecendo), exploração de saídas possíveis (como lidar com esta situação) e de ampliação e desenvolvimento do seu potencial criador (que caminhos posso explorar).
O que nos cabe é criar situações em que a aprendizagem significativa ocorra, estimulando a expressão, a atração e o prazer pelo novo e o desconhecido, ingredientes fundamentais de agir, ser e viver criativamente.
Se o ambiente permitir, pode-se aprender qualquer coisa, e se o indivíduo permitir, o ambiente lhe ensinará tudo o que ele tem para ensinar.
Talento ou “falta de talento” tem muito pouco a ver com isso.
É muito possível que o que é chamado de comportamento talentoso seja simplesmente uma maior capacidade individual para experienciar. Deste ponto de vista, é no aumento da capacidade individual para experienciar, que a infinita potencialidade de uma personalidade pode ser evocada e seu talento criativo pode brotar.

O QUE É EXPERIENCIAR?

Experienciar é penetrar no ambiente, é envolver-se total e organicamente com ele. Isto significa envolvimento em todos os níveis:
• intelectual,
• físico e
• intuitivo.
Dos três, o intuitivo, o mais vital para a situação de aprendizagem, é que geralmente é mais negligenciado.
A intuição é sempre tida como sendo uma dotação ou uma força mística possuída pelas pessoas privilegiadas. No entanto, todos nós tivemos momentos em que a resposta certa “simplesmente surgiu do nada ” ou que “ fizemos a coisa certa sem pensar”. As vezes, em momentos como este, precipitados por uma crise, perigo ou choque, a pessoa “normal” transcende os limites daquilo que é familiar, corajosamente entra na área do desconhecido e libera por alguns minutos, num ato de coragem, a força que tem dentro de si. Através de uma atitude de ser e de estar resiliente frente a estes desafios e infortúnios, somos testamos ao extremo na nossa capacidade de lidar e superar adversidades e voltar a seguir adiante. A resiliência não é uma capacidade nata é adquirida através do ato de enfrentar e encarar situações ricas e que se tornam grandes oportunidades de aprendizagem, realmente significativa.
Quando a resposta a uma experiência se realiza no nível do intuitivo, quando a pessoa trabalha além de um plano intelectual constrito, ela está realmente aberta para aprender. É este o clima e o ambiente ideal para que a realização pessoal e profissional através da criatividade ocorra na realidade.

E A ESPONTANEIDADE?

O intuitivo só pode responder no imediato – no aqui e agora. Ele é gerado no momento de espontaneidade, onde estamos livres para atuar e inter-relacionar, envolvendo-nos com o mundo à nossa volta, em constante transformação.
A espontaneidade cria uma explosão que por um momento nos liberta de quadros de referência estáticos, da memória sufocada por velhos fatos e informações, de teorias não bem digeridas e técnicas que nos foram impostas, que são na realidade descobertas de outros.
A espontaneidade é um momento de liberdade pessoal quando estamos frente a frente com a realidade e a vemos, a exploramos e agimos em conformidade com ela. Nessa realidade, as nossas mínimas partes funcionam como um todo orgânico. É o momento de descoberta, de experiência, de expressão criativa.
É necessário um caminho para adquirir o conhecimento intuitivo. Ele requer:
• um ambiente no qual a experiência se realize,
• uma pessoa livre para experienciar e
• uma atividade que faça a espontaneidade acontecer.


DIFERENTES ASPECTOS DA ESPONTANEIDADE

O USO DE JOGOS INTERATIVOS

O jogo é uma forma natural de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência. As atitudes e as habilidades são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer – é este o exato momento em que as pessoas estão verdadeiramente abertas para recebê-las.
Os jogos estruturados, com regras claras e previamente definidas, permite a exploração do lúdico, do momento de descontração, e do aparecimento de comportamentos que somente o ato de jogar revela: prazer, desafio, risco, ousadia, competição e busca de superação.
Já a ingenuidade e a inventividade aparecem em jogos não estruturados onde a liberdade ocorre desde o seu início. Estímulos são apresentados a partir das necessidades e do momento do grupo e a partir daí o céu é o limite. O uso da linguagem simbólica, da ludicidade e até comicidade geram possibilidades dos indivíduos enfrentarem e buscarem soluções para quaisquer situações que o jogo apresente. Dependendo dos estímulos do jogo o indivíduo podem brincar, ficar de ponta-cabeça, ou até voar... De fato, toda maneira nova ou extraordinária de jogar é aceita e aplaudida por seus companheiros de jogo, como um meio de romper e lidar com os limites do ilimitado, que é a potencialidade humana.

E A ATUAÇÃO DRAMÁTICA?

A capacidade de criar e dramatizar uma situação imaginativamente e portanto desempenhar um papel é uma experiência maravilhosa, é como uma espécie de descanso do cotidiano que damos ao nosso eu, ou as férias da rotina de todo o dia. Observamos que essa liberdade psicológica cria uma condição na qual tensão e conflito são dissolvidos, e as potencialidades são liberadas no esforço espontâneo de satisfazer as demandas da situação.

A FORÇA DO JOGO

Qualquer jogo é altamente social e propõe intrinsicamente um problema a ser solucionado, um ponto ou objetivo com o qual cada indivíduo deve se envolver, seja para atingir o gol ou para acertar uma moeda num copo. Deve haver acordo de grupo sobre as regras do jogo e a interação que se dirige em direção ao objetivo para que o jogo possa acontecer.
Os jogadores tornam-se ágeis, alertas, prontos e desejosos de novos lances ao responderem aos diversos acontecimentos acidentais simultaneamente. A capacidade pessoal para se envolver com os problemas do jogo e o esforço dispendido para lidar com os múltiplos estímulos que ele o provoca, determinam a extensão desse crescimento.
O crescimento ocorrerá sem dificuldade porque o próprio jogo o ajudará. A energia liberada para resolver o problema, sendo restringida pelas regras do jogo e estabelecida pela decisão grupal, cria uma explosão – ou espontaneidade – e, como é comum nas explosões tudo é destruído, rearranjado, desbloqueado.

O OUVIDO ALERTA OS PÉS, E O OLHO ATIRA A BOLA

Todas as partes do indivíduo funcionam juntas como uma unidade de trabalho, como um pequeno todo orgânico um micro sistema que é a estrutura do jogo. Dessa experiência integrada, surge o indivíduo total dentro do ambiente total, e aparece o apoio e a confiança que permite ao indivíduo abrir-se e desenvolver qualquer habilidade necessária para a comunicação dentro do jogo. Além disso, a aceitação de todas as limitações impostas possibilita o aparecimento do jogo ou da cena, no caso da dramatização.
Sem uma autoridade de fora impondo-se aos jogadores, dizendo-lhes o que fazer, quando e como, cada um livremente escolhe a autodisciplina ao aceitar as regras do jogo e acata as decisões de grupo com entusiasmo e confiança. Sem alguém para agradar ou dar concessões, o jogador pode, então, concentrar toda sua energia no problema e aprender aquilo que se dispõe a aprender.



APROVAÇÃO/DESAPROVAÇÃO E A EXPERIÊNCIA CRIATIVA

O primeiro passo para jogar é sentir liberdade pessoal. Porém poucos de nós somos capazes de estabelecer um contato direto com a realidade, seja real ou através de jogos espontâneos, sem a necessidade de busca de aceitação. Uma simples ação pode vir a ser interrompida pela necessidade de comentário ou interpretação favorável por alguém - uma autoridade, por nós estabelecida e reconhecida.
Tememos não ser aprovados, ou então aceitamos comentários e uma interpretação de fora inquestionavelmente. Numa cultura onde a aprovação/desaprovação tornou-se o regulador predominante dos nossos esforços, nossas liberdades pessoais são julgadas e acabam sendo dissipadas.
Abandonados aos julgamentos arbitrários dos outros, oscilamos diariamente entre o desejo de ser amado e o medo da rejeição para produzir. Qualificados como “bons” ou ”maus” desde o nascimento (um bebê “bom” não chora) nos tornamos tão dependentes da tênue base de julgamento de aprovação/desaprovação que ficamos criativamente paralisados.

VEMOS COM OS OLHOS DOS OUTROS E SENTIMOS O CHEIRO COM O NARIZ DOS OUTROS

Assim, o fato de depender de outros que digam onde estamos, quem somos e o que está acontecendo resulta numa série (quase total) perda de experiência pessoal. Perdemos a capacidade de estar organicamente envolvidos num problema, e de uma maneira desconectada funcionamos somente com partes de nosso todo. Não conhecemos nossa própria substância, e na tentativa de ser pelos olhos de outros, a auto-identidade é obscurecida, nosso corpo e a graça natural desaparece, e a aprendizagem é afetada. Tanto o indivíduo como qualquer forma de arte e expressão são distorcidos, e a nossa auto-compreensão se perde.
Por outro lado, ao tentarmos nos salvaguardar de ataques, construímos uma fortaleza poderosa e nos tornamos tímidos, ou então lutamos cada vez que nos aventuramos a sair de nós mesmos. Alguns, nesta luta com a aprovação/desaprovação, desenvolvem egocentrismo e exibicionismo; outros desistem e simplesmente seguem vivendo. Em todos esses casos, o contato com o ambiente é distorcido.
A auto-descoberta e outros traços exploratórios tendem a tornar-se atrofiados. O fato de ser “bom” e evitar ser “mau”, ou ser “mau”/porque não se pode ser “bom”, torna-se um modo de vida para aqueles que precisam da aprovação/desaprovação de uma autoridade – e a investigação, assim como a solução dos problemas, tornam-se de importância secundária.
A aprovação/desaprovação cresce a partir do autoritarismo que, com o decorrer dos anos, passou do autoritarismo dos pais para o do professor e, finalmente, para o de toda a estrutura social (a família, os vizinhos, os chefes, os outros...).
É mais difícil reconhecer o autoritarismo na aprovação do que na desaprovação – particularmente quando alguém solicita a aprovação. Isto lhe dá auto-conhecimento, pois uma aprovação da autoridade numa situação de aprendizagem, indica que foi feito algum progresso, mas um progresso em termos do outro, não em termos do eu.
A verdadeira liberdade pessoal e a auto-expressão só podem florescer numa atmosfera onde as atitudes permitam igualdade e as relações de dependências não saudáveis sejam eliminadas.


Judite F. Wey

Texto extraído e inspirado no livro: “Improvisação para o Teatro”, Viola Spolin, Ed. Perspectiva, 1979