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O CATADOR DE FOLHAS

Maluh Práxedes
mleite@bdmg.mg.gov.br

Fiz faculdade muito cedo. Fui o primeiro da turma de Medicina de 1954. Especializei-me logo depois em Cirurgia Cardiovascular, coisa rara na época. Casei-me nesse mesmo ano, com mulher médica Anestesista, uma companheira de todos os gostos, a mesma admiração pela então União Soviética. Uma cidade? São Petersburgo ou Leningrado, como queiram. Um escritor? Dois: Maiakovski e Puchkin. Um pintor? Polenov. Uma personalidade? Catarina, a Grande. Um compositor? Um só? Impossível. Todos os eruditos, do mundo inteiro.

Depois da especialização que fiz em Moscou, percorremos diversas cidades européias e numa dessas viagens minha adorada Catarina (que sorte a minha) engravidou-se de nosso pequeno Vladimir (claro!). Já de volta ao Brasil tivemos ainda Alexandre e Natália. Esta se casou cedo, não quis nada com a arte de ser profissional de sucesso, como eu e Catarina sempre fomos. A moça teve logo seus dois filhos, um casalzinho pra lá de birrento e cheio de dengos, vestindo-se com as mais sofisticadas grifes, falando sei lá quantos idiomas, casa em Angra, em Teresópolis e muitas viagens por Paris - sempre Paris. Esses netinhos nada simpáticos fizeram de suas vidas o inferno da nossa.

Vladimir foi conhecer suas raízes e há anos mora em Moscou, para nosso orgulho. Vem pouco ao Brasil e até com sotaque ele já fala. Casou-se com uma moscovita e têm três filhos, todos homens, e só nos vimos uma única vez, no Natal de 1995. Não gostam - os três - do clima tropical. Eu, sinceramente, nunca tinha ouvido alguém dizer que o calor incomodasse. Alexandre, o nosso Grande problema, bebe, cheira, engravida mulheres por esse mundo de Deus só porque é belo, o rapaz. Muito, muito bonito. E sua irresponsabilidade é proporcional ao furor que causa por onde passa. Já tem 42 anos e cinco filhos com mulheres loucas varridas, como dizem por aí. Todas brigando por pensões que eu, com minha aposentadoria e minhas rendas imobiliárias tenho que repassar por causa desse seu "pênis de ouro", como costumo me referir à sua mania de reproduzir filhotes tão problemáticos como ele e as mães dos rebentos.

Ano de 2003, Catarina e eu já temos 72 e 69 anos, respectivamente, apesar dela jurar de pés juntos que acabou de completar 60. Acho graça, ela ainda tem seu charme, mas esconder pra quê, meu Deus? O bonito é estar "enxuta" e feliz. Quer dizer, feliz em parte. Nosso único filho que nos dá orgulho não mora conosco há anos. Tanto falamos em sua cabeça das maravilhas da Rússia que ele se mandou pra lá. Natália vem em casa pra reclamar do casamento, que o marido não tem lá mais aquela fortuna toda, e fica pedindo pra gente ajudar na faculdade dos filhos com apenas R$ 5 mil por mês. Vê se pode? E Catarina morrendo de dó dá lá seu jeito de colaborar com um pouco aqui um tanto acolá, e essa ajuda nunca fica por menos de R$ 8 mil. Tudo bem, nossa renda mensal é boa, mas e o Alexandre que também nos consome uma pequena fortuna? O rapaz vira e mexe vem morar conosco, e tem a cara de pau de "vender" peças valiosas que trouxemos de nossas viagens mundo afora. Catarina chora escondida, sem coragem de reclamar. Eu confesso, já me cansei. Sei que tudo vai ficar pra eles mesmos, que vai ser uma briga acirrada pra dividirem tudo o que conquistamos nesses 49 anos de vida em comum.

Logo, logo será nossa Bodas de Ouro. Vladimir deve vir, prometeu-me nesse Natal. E vem com a família completa, para nossa alegria que falamos bem o russo. Natália disse que quer fazer uma festa inesquecível, com o nosso dinheiro, é claro. Alexandre não se toca. Diz que poderá estar aqui, ou em Paris, vai depender da mulher com quem estará dividindo a cama.

Enquanto nossa festa não vem, o calor ainda reina por aqui e as folhas insistem em cair, sujando tudo ao nosso redor. Alexandre, o Grande dorme e Catarina, a minha Grande prepara o almoço. E eu, como em todas as manhãs, mesmo febril, vou catando folhas secas na varanda e na calçada de nossa casa, nesse mês abril.

Malluh Praxedes