MULHERES
DESDOBRÁVEIS[1]
Num
importante jornal europeu, saiu há pouco tempo um anúncio que pretendia vender
um determinado tipo de eletrodoméstico. Nada mais comum que isso, o único
problema era a foto utilizada naquele anúncio. Em primeiro plano estava um
homem com uma faca ensangüentada na mão. No segundo plano, estava uma mulher
seminua, na cama, de bruços e com sinais de esfaqueamento. No corpo do texto
algo semelhante à seguinte mensagem: quem
disse que ela podia não querer o eletrodoméstico ...? Ao lado desse anúncio,
havia a declaração de alguma ONG feminista que criticava o anúncio ao mesmo
tempo em que divulgava as alarmantes estatísticas da violência doméstica de
homens contra suas esposas na comunidade européia. Algumas páginas depois, uma
reportagem falava que mais de 85% das mulheres do mundo árabe são analfabetas.
Esse era um jornal do início do ano de 2002! Será que no ano de 2022 a situação
da mulher se encontrará muito melhor que essa? Essa é a nossa esperança e
nosso esforço construtivo!
|
A
revista CREARMUNDOS, sensível a essas questões e considerando que a maioria
das pessoas que trabalham em educação são mulheres, busca tratar nesse mês a
temática feminista e sua relação com a educação. Para tanto, entrevista a FINA
BIRULÉS, tradutora da filósofa Hannah
Arendt na Espanha, autora de livros sobre subjetividade, ação e política,
coordenadora do seminário de estudos filosofia
e gênero e professora de filosofia contemporânea na Universidade de
Barcelona.
|
|
Nossa
conversa estará organizada em três blocos temáticos:
1-Sobre a relação mulheres X educação
2-Sobre a educação das mulheres e a educação dos homens
3-Sobre as mulheres pensadoras e sobre a contribuição teórica feminina
TEMA
1:
Sobre
a relação mulheres X educação
CREARMUNDOS:
Você
poderia nos dizer como vê a relação entre as mulheres e a educação?
FINA
BIRULÉS:
Uma
boa forma de começar a falar desse tema é referindo - me aos textos clássicos
de Virgínia Wolf, que além de formular discursos sobre o feminino e o
masculino, reclamava independência econômica e educação para as mulheres. Ou
seja, uma primeira questão que considero importante de enfatizar é sobre o
direito à educação a todas as mulheres do planeta.
Atualmente
na Europa, em função da imigração muçulmana, tem surgido o debate em torno
da proibição ou não do véu que cobre o rosto das meninas que vão às
escolas ocidentais. O mais importante é que essas meninas possam freqüentar a
escola, tendo acesso à cultura e aprendendo a articular suas idéias e seus
pensamentos. Se elas o fazem com véu ou sem ele, é o menos relevante nesse
momento. Ou seja, estou de acordo com Virgínia Wolf, as mulheres precisam ter
acesso à educação e isso é o mais importante.
CREARMUNDOS:
Você
diria que para diminuir a discriminação de gênero, é suficiente que todas as
meninas tenham seu assento garantido num banco escolar?
FINA
BIRULÉS:
Não
é suficiente, mas é um passo importante. No fundo, o objetivo da educação é
transmitir um mundo. Quando educamos as novas gerações, transformamos as crianças
em herdeiras de um mundo e do que queremos conservar dele. Infelizmente, a educação
tem transmitido um mundo com seus preconceitos e seus esquecimentos. O preço da
educação para todas as meninas é esta inclusão num suposto neutro que no
fundo é masculino.
Nas
escolas de crianças muito pequenas, quando as professoras pedem para que “os
meninos” abram os livros na página ... , as meninas perguntam: eu
também professora? As meninas sabem que não são “meninos” e se
diferenciam deles. Mas, essas mesmas meninas, quando chegam no ensino médio, já
não fazem esse tipo de perguntas. Elas percebem que o mundo é masculino e que
têm que adaptar – se a ele se querem seguir vivendo em sociedade. Elas não
perguntam se estão ou não incluídas no mundo dirigido aos homens (e por
eles!), simplesmente percebem-se incluídas nele de maneira diminuída. A
linguagem ainda é muito excludente do ponto de vista do gênero.
CREARMUNDOS:
Você
poderia falar um pouco mais sobre essa relação entre a linguagem e os
preconceitos de gênero?
FINA
BIRULÉS:
Muitos
pensam que basta mudar as leis, para resolver os problemas de discriminação de
gênero. Na Espanha, muitos políticos defendem a mudança das leis para
resolver o problema do alto índice de violência doméstica contra a mulher.
Seguramente, é importante que as leis estejam mais justas com relação a isso,
mas a transformação necessária deve se dar no imaginário coletivo. Enquanto
o ato de bater em uma mulher não for visto como tabu, como algo extremamente
horroroso, como um “canibalismo”, a situação não muda verdadeiramente,
por mais que mudem as leis. O corpo da mulher como algo a ser dominado é o símbolo
que precisa ser transformado. As mudanças mais profundas se dão a nível simbólico,
e a linguagem é sua grande mediadora.
Em
função da origem patriarcal de nossa cultura, a linguagem está cheia de
expressões nas quais o feminino é um lugar de indignidade. Deveríamos nos
perguntar constantemente: Quais são esses lugares de indignidade que estão na
linguagem? Como não reproduzi-los e transmiti-los como verdades?
CREARMUNDOS:
Na
sua opinião, o que a professora poderia fazer para ajudar nessa mudança simbólica?
FINA
BIRULÉS:
Desde
a psicanálise lacaniana que se anuncia o declive do patriarcado e como as
mulheres não estão dispostas a renunciar a tudo o que já conseguiram a nível
social, resta agora empreender uma ação consciente a nível simbólico.
Feministas ou não todas nós seguimos mantendo a lógica patriarcal, quando
reproduzimos a linguagem tal qual ela está estruturada. Esse mundo simbólico
pode ser transformado, quando as professoras deixarem de considerar que essa lógica
patriarcal deve seguir funcionando. E, para tanto, devem considerar como legítimo,
em seu trabalho, o imaginário feminino e sua linguagem. Com certeza essa
atitude é capaz de gerar a mudança simbólica que dignifica o lugar do
feminino no mundo.
CREARMUNDOS:
Você
poderia dar exemplos de ações concretas nessa direção?
FINA
BIRULÉS:
Um
trabalho importante refere-se aos livros didáticos, porque eles são responsáveis
pela transmissão de um imaginário e um determinado tipo de linguagem. Eles são
um importante meio de reprodução do mundo simbólico. A professora pode estar
atenta a isso, tratando de descobrir se os livros estão passando a imagem de
uma mulher débil e pouco importante, através de sua linguagem imagética e
escrita.
CREARMUNDOS:
No
Brasil, muitas têm sido iniciativas nesse sentido. Há um trabalho consistente
no que se refere à análise dos livros didáticos e suas mensagens “ideológicas”.
Muitos têm sido os cuidados para que não sejam reforçados os preconceitos
raciais, de gênero, religiosos e outros.
Você
indicaria alguma outra ação com relação aos livros didáticos e demais
materiais utilizados para estudo?
FINA
BIRULÉS:
As
meninas quando vão à escola ou à uma faculdade, dificilmente estudam uma
mulher como se as pensadoras não houvessem existido ou como se não fossem
dignas de ser objeto de estudo. Esse é um aspecto igualmente importante de ser
considerado pelas professoras. É necessário que todos tenhamos consciência de
que o trabalho das mulheres, se converte em noticia e não em obra, por isso a
produção feminina não é transmitida como parte da cultura humana. Na
filosofia, por exemplo, existem muitas pensadoras, que quando vivas, são lidas
e reconhecidas, mas desaparecem porque não são transmitidas. Esse fato as
condena ao esquecimento. Assim, as meninas descobrem que as mulheres não estão
em nenhum livro e concluem que devem ser menos capazes, em função disso.
Lembro-me
de um caso jocoso que ilustraria bem essa questão. Uma menina de 10 anos, na época
de Franco, pensou que Espronceda[2]
era uma mulher, porque aparecia no livro escolar com cabelos compridos. Somente
depois de completar 15 anos, pode descobrir que era um homem. Esse é um assunto
importante, afinal com qual imagem de feminino, as meninas podem se identificar
quando estão diante de um livro escolar?
TEMA
2:
Sobre
a educação das mulheres e a educação dos homens
CREARMUNDOS:
Educar
conjuntamente mulheres e homens diminui os preconceitos de gênero?
FINA
BIRULÉS:
Há
alguns anos, um grupo de pedagogas e psicólogas francesas apresentaram um
estudo comparativo entre as escolas dedicadas ao ensino exclusivo de mulheres e
as escolas que se dedicam à co - educação. Descobriram, entre outras coisas
como as meninas advindas das escolas dedicadas exclusivamente a elas, tinham
desejos e aspirações profissionais que não se reduziam a carreiras
consideradas femininas, muitas se inclinavam às engenharias, matemáticas e
etc. Isso
é um indício de que simplesmente juntando homens e mulheres não se resolve o
problema da discriminação de gênero.
CREARMUNDOS:
Partindo
do pressuposto de que a grande maioria de escolas atuais é mista, como estar
atento a uma educação menos discriminatória?
FINA
BIRULÉS:
Somos
constituídos pelo discurso discriminatório, sem nos dar conta disso. Um pouco
de reflexão sobre nossas próprias práticas pode nos ajudar a estar mais
atentos. Um professor pode buscar ser consciente de sua ação cotidiana, por
exemplo, quando uma aluna e um aluno levantam a mão ao mesmo tempo: Quem é
atendido primeiro? E por que?
A
mudança simbólica à qual nos referíamos é constituída desses pequenos atos
cotidianos, por isso a importância de nos fazermos conscientes deles. Creio
que na educação quase nada é neutro, as professoras pensam que educam
igualmente a meninos e meninas e não é bem assim. Há um conjunto de micro ações
que vão em direção contrária, reforçando esse mundo simbólico que remete a
mulher à uma condição de inferioridade.
Em
geral, se tem a idéia de que conseguir que um sujeito seja autônomo (um dos
objetivos da educação), é algo que implica num “desapego” de sua mãe.
Depois do advento psicanalítico, um indivíduo muito apegado à sua mãe, é
julgado como alguém que tem alguma enfermidade. Soltar-se da mãe é algo
parecido com nascer à partir de si mesmo. Fala-se da importância de “matar a
mãe simbolicamente” para poder ser esse “si mesmo identitário”. E esse
discurso está muito disseminado no campo educacional. Com isso, a imagem das mães
é muito ambígua: a mãe é protetora e amorosa, mas é muito perigosa para o
sujeito, é preciso negá-la! Assim, a imagem da autoridade feminina está
colada à imagem de um perigo devorador. E por que? Porque a questão da
autoridade está muito inserida na cultura masculina e essa forma de autoridade
feminina não é reconhecida como tal nem pelos homens, nem pelas mulheres.
Afinal, nós temos muita dificuldade em reconhecer a autoridade de outra mulher.
E quando se trata de autoridade intelectual isso fica ainda mais reforçado.
Retorno à Virgínia Wolf que trabalhou muito para buscar suas antecessoras,
contextualizando sua obra e buscando ver o que conservava e o que inovava do
trabalho delas. Para mim, ela é um exemplo de mulher que honra e respeita a
autoridade intelectual de outras mulheres.
CREARMUNDOS:
Você
poderia nos falar um pouco mais sobre a questão do poder e da autoridade?
FINA
BIRULÉS: Primeiramente
gostaria de esclarecer que a autoridade é algo crucial no âmbito educacional.
Falo de autoridade e não de autoritarismo, ou seja falo de algo que depende da
confiança que um deposita no outro. A criança obedece porque confia no
professor. Aprende a escrever, porque confia em quem lhe ensina. Aprende um
tema, quando vê autoridade nesse tema.
Quanto
à questão da autoridade feminina, penso que a mesma faz parte daquela necessária
mudança simbólica à qual nos referíamos anteriormente. Quer ver um exemplo?
Muitos diziam que Margaret Tacher não era uma mulher, porque ocupava um lugar
de muito poder e muita força. Isso significa que não se reconhece a capacidade
da mulher para ocupar postos de poder. Uma mulher “poderosa” é difícil de
digerir tanto pelos homens quanto pelas demais mulheres que a consideram como
uma “traidora” em algum sentido. Homens e mulheres têm a percepção de que
somos todas iguais e que por isso, não podemos ocupar posições
hierarquicamente distintas, o que revela uma não autoridade. É como se fôssemos
todas irmãs, uma sem autoridade em relação à outra. Quando uma mulher é
poderosa, as demais sentem muita inveja e rivalizam – se com ela, porque não
são capazes de reconhecer relações não simétricas com uma “igual”. As
mulheres costumam ser muito cruéis
umas com as outras quando estão nessa circunstância e utilizam a linguagem
masculina para massacrarem-se. O
mesmo não ocorre com os homens que são capazes de admirar a outro homem e
respeitá-lo como autoridade. Penso que o reconhecimento da autoridade feminina
é um dos desafios mais importantes nessa mudança simbólica à qual temos nos
referido constantemente.
CREARMUNDOS:
E
a única maneira de pensar a questão do poder é falando de hierarquia? Não se
pode pensar a questão do poder feminino a partir de outra perspectiva?
FINA
BIRULÉS:
O
tema hierárquico tem que ser planteado, se não há hierarquia a autoridade
feminina não é reconhecida como tal. O problema com as relações de
autoridade é que na prática, o poder e autoridade estão muito mesclados.
Vivemos numa sociedade que confunde temor, autoritarismo e autoridade. E muitos
são os que querem conseguir fazer valer seu ponto de vista através de violência,
de repressão e de castigos. O que não podemos esquecer é que quem concede a
autoridade é quem obedece.
CREARMUNDOS:
Muitos
justificam que isso ocorre, porque a mulher “ não foi feita para o poder”.
Parece
que esse problema está diretamente relacionado com uma idéia que se tem de
natureza feminina. O que você diria sobre isso?
FINA
BIRULÉS:
Na
Espanha, essa discussão ocupou principalmente os anos 30, por ocasião da
entrada de obras alemãs que tratavam disso. Falavam do feminino como algo
ligado ao sentimento, à passividade, à falta de lógica. Por causa disso, se
uma mulher tinha cultura e êxito, eram chamadas de mulheres viris. Isso porque
saíam do âmbito do feminino. Ou seja, saíam não apenas do espaço privado,
mas também de sua própria natureza. Considero difícil teorizar sobre a
natureza feminina, ainda que tenha que admitir que um corpo de mulher é muito
distinto de um corpo de homem e que isso determina muito da ação de ambos no
mundo.
Lembrei
–me de Hannah Arendt, que foi a primeira mulher catedrática de seu contexto.
Estava onde não estavam muitas mulheres. Como
escrevia textos polêmicos nos anos 60, muitos chamavam-na de antifeminista. Uma
vez, sendo entrevista lhe perguntaram: Como se sente em ser a primeira mulher a dar conferencias? E ela
respondeu: Há muito tempo estou
acostumada a ser uma mulher! Ou seja, era como se ela dissesse: não
quero aceitar o rótulo de mulher exceção, todas as demais mulheres são
capazes de estar aqui, tanto quanto eu!
TEMA3:
Sobre
mulheres pensadoras e sobre a contribuição teórica feminina
CREARMUNDOS:
Você
diria que existe um pensamento feminino?
FINA
BIRULÉS: Platão,
em seu diálogo Um Banquete, além de falar claramente da diferença entre os sexos
fala da existência de filósofos grávidos: aqueles capazes de terem filhos da
alma. E claro, para Platão ter filhos da alma era muito mais nobre que ter
filhos corporais. Através da boca de Diotima, Platão fala com muita
naturalidade dos sexos e do poder da psique feminina que é capaz de engendrar
idéias e pari-las através do trabalho dos filósofos. E Nietzsche retoma esse
poder de criar, de conceber. Eu sempre me surpreendo muito com essa analogia.
Parece-me que os filósofos estão grávidos de uma maneira tão estranha...
Em
Fedro, outro diálogo de Platão, o filósofo pare discursos belos. Ele é capaz
de parir logos, conhecimento, ciência. E, para tanto tem que encontrar
um corpo de um homem belo. Se não o faz, o discurso, o logos fica dentro dele. Se
o faz, esses discursos saem como plumas, mas esse parto de idéias dói, porque
as plumas não querem sair.
Dava
o exemplo desses dois diálogos para dizer da dimensão feminina do pensamento
que é apresentado por Platão. Esse pensador é “ androgínico”, enfatiza a
relação entre os homens, mas não é “misógino”, não cultiva nenhum ódio
às mulheres; ele apropria - se da capacidade criativa feminina e feminiza a
psique do filósofo. Isso não é muito comum na Antigüidade.
CREARMUNDOS:
Onde
estão as mulheres pensadoras? Por que em geral, os alunos só lêem o que foi
produzido pelos homens?
FINA
BIRULÉS:
Terei
que retomar à questão do poder. Pensemos através de exemplos, na Revolução
Francesa, as mulheres trabalharam muito. Mas, depois que tudo se estabilizou,
foram devolvidas às suas casas, saindo do cenário público.
E a negação da mulher nessa época chegou num estágio tal que
inclusive voltou-se a discutir se ela deveria aprender a ler ou não. O mesmo
ocorreu com a Declaração Universal dos Direitos, as mulheres foram novamente
ocultadas depois que “se ganhou a luta”. Quando a ciência ficou
“poderosa”, as mulheres desapareceram do cenário científico, como se nunca
tivessem produzido ciência ao longo da história humana. Disso conclui-se que
quando um campo teórico chega ao poder, ou quando um movimento social fica
dominante, as mulheres desaparecem do cenário. O “assunto volta a ser coisa
de homens”.
Diferentemente
do que muitos supõem, nem todas as mulheres passaram todos esses séculos
dentro de casa, entregues ao trabalho doméstico, cito o nome de algumas delas:
Aspasia de Mileto, e Hildegarda de Minden.
No
ano de 1990, no seminário FILOSOFIA E GÊNERO, a pedido de alunas e alunos, me
propus a estudar esse tema. Li a História
das mulheres filósofas, a autora explica na introdução que pensava em
fazer um pequeno artigo e acabou criando uma obra de 3 volumes. Isso porque ela
supunha que não haviam existida muitas mulheres filósofas na História, afinal
nunca lhe haviam apresentado. O que descobriu ao longo de sua investigação foi
surpreendente: pensadoras sempre existiram! Na Antigüidade, muitas foram as
pitagóricas, por exemplo. Nos séculos XII e XV existiram diversas pensadoras,
muitas delas eram italianas; inclusive as humanistas foram publicadas na sua época,
mas não voltaram a ser publicadas até o século XIX. Impressionante foi
descobrir que jamais foram transmitidas. Isso somente passou a ocorrer com o
trabalho das pensadoras do século XX.
CREARMUNDOS:
Isso
significa que as pensadoras de agora estarão mais presentes nos estudos das
novas gerações?
FINA
BIRULÉS:
O
complicado é que a situação continua igual. As mulheres escrevem, publicam,
mas não são transmitidas. O meio acadêmico é ainda muito refratário à
produção feminina. Por exemplo, num ciclo de conferências, em geral todos são
homens, porque se supõe que será um debate com ânimo de universalidade. Se se
faz o mesmo só com mulheres, supõe-se que será dirigido a um público
feminino. Quando uma mulher organiza um ciclo de conferências, tem que colocar
homens para conseguir transmitir seriedade em seu evento. Isso é um absurdo que
ainda persiste. Esse é sem dúvida um tipo de conflito que não se resolve
dando mais informação. Os homens já sabem que nós sabemos que eles sabem e nós
sabemos que eles sabem que sabemos. Eles sabem o que deveriam fazer, mas não o
fazem. Igualmente passa algo semelhante conosco. Estamos diante de desacordos de
tal ordem, que não sabemos bem como resolvê-los.
CREARMUNDOS: Parece
que ocorre o mesmo com relação à dupla jornada de trabalho feminino, não?
FINA
BIRULÉS:
Sim,
além de agüentar a mesma jornada de trabalho que os homens, seguimos
trabalhando em casa como antes. E por que permitimos que isso continue assim?
Por que essa situação não muda?
CREARMUNDOS:
Como
você vê essa questão no âmbito político?
FINA
BIRULÉS: Os
homens nos deixam no esquecimento e nós aceitamos. Continua a imagem de que as
mulheres são uma “minoria” e isso não é verdade, estatisticamente somos
maioria. Além disso ocupamos sempre o espaço do “ etc.” com as demais
minorias: as mulheres, os de raça, os de opção sexual diferente e etc. Algum
dia desses vou escrever sobre o “etc”...
Não
somos minoria e não deveríamos deixar que nos tratassem como tal. São eles a
minoria. Por isso, a política das cotas tem sido vista como “complicada”,
porque somos um 53% de mulheres no mundo. E isso muda o peso na balança... Nos
países nórdicos europeus como a Irlanda e a Finlândia, essa política de
cotas vem funcionando, está muito melhor do que aqui na Espanha. Não sei como
é isso no Brasil, mas é importante que não se veja as mulheres governando
como se fossem exceções que necessitam pedir permissão para fazê-lo.
CREARMUNDOS:
Retomando
à produção teórica feminina e sua transmissão cultural, o que você
gostaria de acrescentar?
FINA
BIRULÉS:
Penso
que uma coisa importante é resgatar a produção feminina no momento de
apresentar a tradição cultural humana, transmitindo o que foi produzido pelas
mulheres ao longo da história. É importante incluir nos programas de estudo,
um trabalho de investigação sobre as mulheres e suas produções. Faltam aulas
inovadoras sobre as distinções de gênero. As
mulheres ainda estão como notícia e não como obra e isso é um grande
problema. Para contrapor a isso, é necessário utilizar o texto das mulheres
como fonte de autoridade intelectual, da mesma maneira que se usa o texto dos
homens como tal.
Na
filosofia a obra das mulheres ficou muito mais oculta que nos demais âmbitos do
saber, porque é considerada mais abstrata e de caráter universal. Mas, como já
dissemos, existiram e seguem existindo muitas filósofas que merecem ser
estudadas, já que a capacidade de produzir sentido, tanto têm as mulheres,
quanto os homens.
Na
literatura, as mulheres estão mais reconhecidas, porque ela nunca esteve muito
institucionalizada, assim puderam entrar e produzir nesse campo com maior
liberdade. E isso ocorre desde a antigüidade grega com a poetisa Safo até
nossos dias.
Na
ciência, ficaram mais ocultas como na filosofia, principalmente nos primeiros
momentos até o século XVIII. E nesse campo de saber há o agravante de que a
ciência tornou-se um lugar de poder econômico, isso amplia o desaparecimento
das mulheres. Mas, por exemplo, na França Darwin foi introduzido por uma
mulher. Ou seja...
CREARMUNDOS: Você
gostaria de deixar uma mensagem final para nossos leitores e leitoras?
FINA
BIRULÉS:
No
âmbito da educação, as mulheres são uma grande maioria. Isso faz com que em
parte seja da responsabilidade delas a transmissão de outra história, mais
veraz do que a que foi passada até então. Que sintam-se responsáveis pela não
ocultação do saber feminino; podem, por exemplo,
apresentar nas suas aulas, uma literatura científica produzida por
mulheres. A memória é uma das formas de gerar sentido, protegendo a
vida da suspeita do casual e do “sem propósito”; que as pensadoras
femininas e suas produções possam ser resgatadas do esquecimento através do
trabalho dos professores de jovens e crianças.
Penso
que é igualmente importante que saibamos utilizar positivamente nossa
autoridade e nosso poder no trabalho educacional. Afinal, as professoras ainda são
uma reconhecida fonte de autoridade. Para seguir a reflexão sobre esse tópico,
sugiro a leitura do texto A crise na educação,
de Hannah
Arendt.
Outra
coisa que considero crucial é que sigamos com o trabalho de transformação no
campo simbólico. Sei que já existem muitas iniciativas
e materiais que investigam o imaginário e a linguagem, mas tudo isso
ainda não foi suficientemente digerido, porque a mudança necessária não
ocorreu.
E,
por último, do ponto de vista político, há duas grandes questões que ainda
precisam ser consideradas. A primeira é analisar as relações entre as
mulheres, buscando transformar essas disputas e rivalidades impulsionadas pela
inveja e pelo não reconhecimento da autoridade feminina, em outras formas
relacionais mais interessantes. Precisamos encontrar saídas práticas para isso
e fundar entre nós, outro tipo de relação.
A
segunda questão diz respeito a uma presença pública mais afirmativa, isso
serve principalmente para as mulheres com ambições políticas e parlamentárias:
que ocupem os espaços de poder instituído! Chega dessa imagem de vitima
agredida que não pode fazer nada. Muitas mulheres não querem
a etiqueta de feminista, porque
ela traz nas costas o peso de uma
identidade de vítima, um passado de discriminação. E esse passado e essa
identidade, não é querido por
elas. Que revisitemos pois o passado, buscando nele o que foi ocultado e que
permite a construção de uma identidade feminina diferente dessa!
CREARMUNDOS:
A
revista agradece a amabilidade da entrevistada, deixando de presente para ela e
para os leitores a poesia Com licença poética, de Adélia Prado:
Quando
nasci um anjo esbelto,
Desses
que tocam trombeta, anunciou:
Vai
carregar bandeira.
Cargo
muito pesado pra mulher,
Esta
espécie ainda envergonhada.
Aceito
os subterfúgios que me cabem,
Sem
precisar mentir.
Não
sou tão feia que não possa casar,
Acho
o Rio de Janeiro uma beleza e
Ora
sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas
o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro
linhagens, fundo reinos
-
dor
não é amargura.
Minha
tristeza não tem pedigree,
Já
a minha vontade de alegria,
Sua
raiz vai ao meu mil avô.
Vai
ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher
é desdobrável. Eu sou.
|