Infância. Entre
educação e filosofia: experiência e verdade [1]
Walter O. Kohan
professor titular de filosofia da educação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ).
walterk@uerj.br
Eu
jamais penso exatamente o mesmo pela razão de que meus livros são, para mim,
experiências. Uma experiência é algo do qual a própria pessoa sai
transformada. Se eu devesse escrever um livro para comunicar o que já penso,
antes de haver começado a escrever, não teria jamais a coragem de empreendê-lo.
M.
Foucault[2]
Este
projeto nos leva a refletir, repensar sobre nossa vida, nossas idéias,
conceitos, “certo”, “errado”, provocando dúvidas, questionamentos sobre
nós mesmos, nossa postura diante da vida, nossa prática em sala de aula e na
educação como um todo. E fica ... a impossibilidade de continuar a ser o que
se era.
Luisa[3]
Escrever
este livro tem sido uma experiência. Talvez eu devesse dizer que assim está
sendo, mas a iminência do final justifica o passado perfeito. Como toda introdução,
a estamos escrevendo por último. De modo que podemos permitir-nos esse tempo
que tem ecos no presente. Saímos transformados desta escrita. Não somos os
mesmos de quando começamos. No início, não sabíamos exatamente o que
escrever, como fazê-lo. Tínhamos algumas intuições, certos escritos prévios
e uma profunda inquietude a respeito do tema que iríamos abordar. A inquietude,
posterior à experiência de escrita, se multiplicou, aguçou-se, expandiu-se.
Assim acontece com a experiência.
No início tínhamos
também uma certa experiência intensa da infância. Além de minha quádrupla
experiência de paternidade -- ainda que eu não esteja em condições de
explicar nem tenha aludido explicitamente a ela neste trabalho, tem nele uma
incidência a que seria ingênuo me furtar --, nos últimos anos concentrei
minhas inquietações em torno das possibilidades educativas da filosofia com
crianças e de formas de pensar e praticar essas possibilidades. Busquei fazê-lo
desde um registro filosófico, no sentido de habitar aquele amplo espaço
polêmico,
aberto, controverso, compartilhado por filósofos de distintas épocas e tradições,
com mais interrogações do que certezas.
Estas inquietações
encontraram seu marco institucional em um projeto de extensão, ensino e
pesquisa intitulado “Filosofia na Escola”, desenvolvido entre 1997 e 2001,
sob minha coordenação, na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.[4]
Também
este projeto se constitui em uma experiência, nos termos descritos por Foucault
na primeira epígrafe: algo de que se sai transformado. Quando a experiência é
coletiva, como neste caso, todos os que a atravessam – alguns mais, outros
menos, alguns em uma direção, outros em outra – saem transformados, tanto
quanto as relações entre eles e as de cada um consigo mesmo. O que se
transforma é múltiplo: o que pensamos, a relação que temos com o que
pensamos, o que sabemos, a relação que temos com o que sabemos, o que somos, a
relação que temos com o que somos. Como muito bem o testemunha, na segunda epígrafe,
a professora Luisa, da Escola Classe 304 Norte de Brasília, participante do
projeto, a única coisa segura que permanece é a impossibilidade de continuar
sendo o que se era.
“Filosofia
na Escola” foi também uma experiência no sentido de que antes de iniciar o
projeto não tínhamos um método estabelecido e consolidado, nem sequer
objetivos muito precisos. Nada muito além de nossa intenção de trabalhar com
base em alguns princípios bastante abertos, como a defesa da educação pública,
o compromisso com a interrogação filosófica, a necessidade de abrir caminhos
de transformação entre a escola e a universidade. Não apenas não tínhamos método
como não podíamos tê-lo. Tal como o pensávamos, sua presença havia
significado um obstáculo para a intensidade da experiência, algo que não podíamos
colocar em risco.
Cada início
de ano em que renovávamos o projeto, tínhamos a mesma sensação: estar começando
de novo. Na verdade, esta situação era quase permanente, como se cada momento,
cada reunião de trabalho, cada encontro de “formação”, fosse um novo início.
Não se pode negar os incômodos e obstáculos práticos dessa relação. Mas
assim é com a experiência. Assim também ocorre com a filosofia, a educação
e a infância, quando se deixam atravessar pela experiência. Disto também tratávamos
no projeto: perfurar práticas e saberes fossilizados, cristalizados,
estigmatizados.
O caso é que
a experiência neste projeto transformou radicalmente, entre outras coisas,
minha relação com a filosofia, com a educação e com a infância, temas
principais deste livro. Também transformou o que penso sobre a relação entre
esses três conceitos. A transformação, então, está no início e no fim
desta escrita: pude começar a escrever porque já não era o mesmo que alguma
vez fui em relação à filosofia, à educação e à infância; e também o fiz
para que, ao término da escrita, já não pudesse seguir sendo o mesmo que eu
era quando a havia iniciado, para que uma nova possibilidade surgisse na minha
relação com a filosofia, a educação, a infância. A transformação está
também no “durante”, nos vaivéns, nas reelaborações, nas mudanças de
ritmo e rumo, na impossibilidade de manter um certo índice inicial.[5]
Que uma
escrita seja uma experiência exige falar também da difícil relação com a
verdade e das relações entre experiência e verdade. Disse Foucault:
Então
(A História da Loucura) é
um livro que funciona como uma experiência, para aquele que o escreve e para
aquele que o lê, muito mais que como uma constatação de uma verdade histórica.
Para que se possa fazer esta experiência através deste livro, é necessário
que o que se disse seja verdadeiro, em termos de verdade acadêmica,
historicamente verificável. Não pode ser tal como uma novela. Não obstante, o
essencial não se encontra na série de constatações de uma verdade histórica,
mas na experiência que este livro permite fazer. Pois bem, esta experiência não
é nem verdadeira, nem falsa. Uma experiência é sempre uma ficção; é algo
que não se fabrica a si mesmo, que não existe antes e que encontrará o
existir depois. Esta é a difícil relação com a verdade, a maneira na qual
esta última se encontra comprometida em uma experiência que não está atada a
ela e que, até certo ponto, a destrói.[6]
A
experiência e a verdade habitam espaços diferentes e possuem uma relação
complexa. Uma experiência intensa, importante, desejável, supõe um
compromisso com uma certa verdade acadêmica, histórica, que a antecede. A
experiência de escrever este livro pressupõe essa forma de verdade. Mais ainda,
dela necessita. Não estamos dispostos a depreciar ou a renunciar a uma tal
verdade. Não obstante, a experiência da escrita a transcende, a esquiva, a
evita e, em seu sentido mais importante, a coloca em questão, a ameaça,
modifica nossa relação com essa verdade e, dessa forma, transforma aquilo que
somos. Este é o valor principal de uma experiência de escrita: não contribuir
para constatar uma pressuposta verdade, mas sim transformar a relação que
temos conosco mesmos, ao transformar a relação que mantemos com uma verdade na
qual estávamos comodamente instalados antes de começar a escrever.
O
tema principal deste livro é a infância, e seu sentido principal é
transformar nossa relação com a infância por meio da filosofia e da educação:
a relação de quem escreve uma experiência, e a relação daqueles que lêem
essa experiência. Sua preocupação primordial é uma prática coletiva e um
modo habitual de pensar as interfaces entre infância, filosofia e educação,
particularmente no campo temático que denominamos Filosofia da Educação.
Dividimos
este trabalho em duas partes. Na primeira parte, “Filosofias clássicas da Infância”,
estudaremos como se tem constituído historicamente um certo mito em torno da
infância. Em um capítulo inicial, buscaremos as raízes de um modo dominante
de pensar a infância em alguns Diálogos
de Platão. Analisaremos ali as marcas principais do que constitui uma idéia da
infância que tem sido fundadora em nossa tradição. Em um segundo capítulo,
veremos como certos traços desta idéia se consolidaram, cristalizaram e
sofisticaram com a emergência de algumas instituições nas sociedades modernas
européias. Em um terceiro capítulo, “A filosofia educa a infância?”, nos
interessa problematizar os caminhos e sentidos definidos pelo programa Filosofia para crianças para fazer da filosofia uma ferramenta
escolar para democratizar as crianças. Analisaremos em que medida esse
programa, apresentado como “inovação educativa”, reveste um caráter
bastante tradicional em seus modos de pensar e infância e a filosofia, bem como
nos sentidos que propõe para uma educação filosófica.
Na
segunda parte, “A infância educa a Filosofia”, afirmaremos uma outra idéia
de infância: a infância já não como idade cronológica, mas como uma
possibilidade afirmativa do pensar, como uma metáfora da gênese de um novo
pensar. Desdobraremos esta imagem em dois momentos: a filosofia grega clássica
e a filosofia francesa contemporânea. Serão quatro formas “infantis” de
pensar quatro expressões de filosofia. Vai ser a busca de um modo desacostumado
de pensar algumas questões, no encontro com esses filósofos.
Da
filosofia grega, escolhemos Heráclito e Sócrates. No primeiro, privilegiamos
motivos de uma lógica do pensar que não se submete facilmente aos cânones
estabelecidos pela lógica tradicional, um tempo infantil não-linear e uma
atitude inquietante e inquietadora: a espera à espreita. Em Sócrates, nossos
motivos se concentram no sentido do perguntar, numa forma específica de pensar
e afirmar as relações entre filosofia e política e, por fim, num modo não-totalitário
nem totalizador de pensar a educação.
Entre
os contemporâneos, Jacques Rancière e Gilles Deleuze. O primeiro é motivo
para pensar outra vez, de novo, o ensinar e o aprender e para considerar um
princípio político de um ensinar e de um aprender filosóficos. Com Deleuze,
destacaremos a percepção de uma imagem do pensamento que impede pensar e a
afirmação irrestrita da criação como forma específica do pensar filosófico.
Finalmente,
no epílogo, apresentaremos aquela imagem da infância que temos praticado na
parte segunda desta tese. Estaremos, de alguma forma, propondo um certo conceito
de infância que recrie a forma dominante de pensá-la: será uma infância da
infância. Estudaremos ali, junto a G. Agamben, conexões entre os conceitos de
infância, linguagem, experiência e história. Proporemos uma política da infância,
que permita pensar uma educação e uma filosofia abertas e não-totalitárias.
Nesta parte do texto, abrimos à infância um porvir na filosofia e na educação
ou, quem sabe, entre elas.
Introdução ao livro Infância. Entre
educação e filosofia publicado pela Editora Autêntica (Belo
Horizonte, 2003): www.autenticaeditora.com.br
[2]
M. Foucault, “Entretien avec Michel Foucault”. Entretien avec D.
Tromabadori. In: Dits et Écrits. Paris:
Gallimard, 1994/1978, p. 41.
[3]
Luisa, professora da escola classe 304 Norte, da rede pública de ensino, em
Brasília, DF, participante do Projeto “Filosofia na Escola”. Depoimento
tomado do livro Filosofia na Escola Pública,
organizado por W. Kohan, B. Leal e A. Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2000, p.
180.
[4]
Pode-se consultar uma descrição mais detalhada deste projeto em W. Kohan,
B. Leal, A. Teixeira (Orgs.), op. cit.,
2000.
[5]
Esta introdução é um testemunho dessa experiência de escrita. Conheci o
texto de Foucault que a inspira na última fase de redação desta tese.
Propiciaram-no a mim Maximiliano López e Fabiana Olarieta, alunos do curso
de Especialização sobre Ensino de
Filosofia. Níveis Fundamental e Médio, organizado pela área
“Filosofia na Escola” da Universidade de Brasília.
[6]
M. Foucault, op. cit., 1994/1978,
p. 45.
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