MUNDOS DIALOGADOS   

Fora dos muros da sala de aula:
As cidades como um "alimento"

CREARMUNDOS, entrevista Eulàlia Bosch, uma educadora e escritora criativa e inquieta, que nos últimos anos, vem explorando os campos da educação fora dos muros da sala de aula.  

ilbosch@cdlcat.icnet.es

Um de seus principais centros de interesse profissional tem sido explorar a relação entre instituições educacionais e a vida cultural das cidades. Trabalha em organização de exposições, edição de livros e consultoria artístico-educativa em museus, fundações e centros cívicos. Publica artigos em distintos meios de informação e lançou recentemente o livro El Placer de Mirarel museo del visitante.


Decidimos propor à nossa entrevistada, atualmente uma das donas da empresa GAO IDEES I PROJECTES, que nos apresente uma pequena autobiografia de sua trajetória profissional. Assim, teremos oportunidade de conhecê-la melhor. Comecemos nosso frutífero diálogo!

CREARMUNDOS: Você poderia nos fazer uma síntese de sua trajetória profissional?  

Eulàlia Bosch:Gosto que me pergunte isso, sabe por que? Com o tempo, venho descobrindo que a única pergunta que não posso responder é qual é a minha profissão. Vamos ver se me explico melhor, cada vez mais, estou me generalizando e uma profissão é uma especialização. Vejamos o exemplo concreto do meu percurso profissional. Comecei a trabalhar na educação formal, como professora de filosofia no ensino médio. Interessar-se por filosofia, já significa estar voltado para questões universais, uma vez que a mesma é uma forma de conhecimento geral sobre a realidade. Conhecimento que afirma que não há uma única resposta na qual se possa colocar todas as dúvidas humanas. Nessa experiência, descobri que meus alunos viviam um divórcio entre a linguagem e o pensamento e isso me inquietou o suficiente para que eu buscasse alternativas. Minha atitude de interrogação constante, me levou a conhecer a proposta de filosofia para crianças de Mathew Lipman, que iluminou de forma original minhas reflexões. Através de sua proposta vi que estavam unidas a linguagem oral e o pensamento. E, que a língua pode ser aprendida através do exercício do pensamento e da expressão do mesmo. O impacto dessa proposta foi tão forte, que fui me distanciando dos jovens e me aproximando das crianças. E, ao fazer isso, fiquei sem minha primeira profissão: professora de jovens. Nesse momento, junto com outros companheiros, criamos o IREF, uma empresa que se dedicava à formação de professores no campo de filosofia para crianças. Chegou um momento em que tudo funcionava bem, tínhamos os livros publicados, os programas de formação e treinamento testados e bem desenvolvidos, inúmeras escolas organizadas. Então, nós os fundadores dessa empresa, decidimos nos premiar. Cada um de nós passou a dedicar-se de maneira mais profunda a um tema de interesse pessoal que pudesse ter relevância para o que realizávamos juntos. Eu me dediquei profundamente ao campo da estética e o mundo da arte foi mudando minha concepção de vida. Ainda no IREF, organizei duas exposições envolvendo artistas e as crianças: CRIATURAS MISTERIOSAS  e CAIXA MÁGICA. O êxito com essa experiência me levou a trabalhar no MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Barcelona). Ali, fui contratada para montar um serviço educacional e fiquei por três anos, ainda que pensasse que minha relação com a arte não pudesse ser profissionalizável. Mas, foi nesse trabalho que confirmei que a arte deve fazer parte da educação das crianças, porque realmente cumpre um papel muito significativo na formação das mesmas.

Depois disso, passei a escrever sobre a minha experiência, assim iniciei-me como escritora. Com outros companheiros, criamos a empresa GAO, na qual sigo trabalhando com projetos que envolvem a arte.

 

CREARMUNDOS: Considerando essa sua trajetória profissional, qual é sua atual concepção  de educação? 

Eulàlia Bosch:Penso que a educação é algo que se produz entre as pessoas, ou entre as pessoas e seu entorno. É fruto do encontro entre as pessoas e as coisas que se tocam. E isso somente ocorre, quando os envolvidos estão devidamente sensibilizados.  

A escola é o lugar propício para que esse encontro ocorra, quando é palco de múltiplos estímulos, quando oferece “menus” variados e surpresa suficiente para despertar a sensibilidade das crianças e dos jovens. Quando a escola é um lugar onde tudo está claríssimo, sem perguntas e sem surpresas, o máximo que se consegue formar é o que disse o artista Oteiza “crianças de granja” - como os frangos produzidos em série e sem sabor... A escola não pode querer prever tudo o tempo todo, porque agindo assim se esquece de algo fundamental – muitos dos grandes momentos educativos se produzem ao acaso. A escola precisa aprender a permitir que esses momentos ocorram. 

Sem surpresa e sem interrogação não existe educação, existe apenas transmissão de conhecimento.

CREARMUNDOS:Você afirmaria que a cidade é uma educadora das crianças e dos jovens? 

Eulàlia Bosch:A cidade é a grande educadora! – quando entendida como lugar de encontro, de vida e de conexão. Eu concordo com aquele ditado africano que afirma: É necessária uma aldeia inteira para educar uma criança. O lugar ideal para a educação é a COMUNIDADE.  O contexto de um grupo social organizado é o único lugar onde autenticamente a educação se produz. 

As cidades são uma importante referência para todas as pessoas. Ou se vive numa cidade, ou perto dela, ou entre duas, etc . Aprender uma vida cidadã melhor, é hoje uma questão muito forte! Além do mais, não se pode esquecer que a responsabilidade da educação é da cidade e não apenas da escola. O cinema, o mercado, as praças, a praia, os acampamentos na montanha, a televisão, a internet, o rádio são grandes elementos educacionais! E a escola adquire uma grande força educativa quando se sustenta na riqueza humana acumulada nestes espaços e lugares. 

CREARMUNDOS :Você poderia nos explicar algo acerca de seus projetos que têm como tema a cidade vista de uma perspectiva educacional e estética? 

Eulàlia Bosch:Essa idéia de que a cidade é o elemento educacional fundamental, concretizou-se quando estive trabalhando no museu. Naquele momento ficou claro que entre o museu e a escola, está a rua – o elemento mais potente de identificação da vida urbana. O lugar do previsto e do insólito. O lugar totalmente exterior que pode ser contemplado do interior resguardado dos edifícios. O lugar de passagem, mas também de acolhimento daqueles que não têm teto. O lugar do intercâmbio e do assalto. O lugar da concordância, do apoio e da revolta. O lugar da afirmação do poder e da contestação. O lugar da liberdade e da submissão a todo tipo de propaganda. A rua é a metáfora desse lugar para o qual as escolas buscam dotar seus estudantes de recursos morais e intelectuais. Ter clareza disso delineou todo o meu trabalho ali. 

O MACBA está situado num bairro de Barcelona chamada Raval. Ali, temos uma realidade caracterizada pela diversidade cultural em função de distintas imigrações, e suas diversas consequências, tais como pobreza e marginalização. Entendi então que o trabalho educativo que o museu poderia realizar seria colaborar para que aquela região perdesse seus contornos de gueto. Essa perspectiva me deu uma dupla visão, por um lado entendi a cidade como educadora e, por outro, vi a arte como instrumento de educação cidadã. A partir dessa concepção, passei a atuar com um pé dentro do museu e o outro no seu entorno. O projeto cidade das palavras foi uma resposta concreta desse movimento que eu realizava. 

CREARMUNDOS: E você poderia nos explicar melhor o que é o projeto cidade das palavras

Eulàlia Bosch: Entendo que o meio ambiente humano é formado por palavras! Portanto, se queria trabalhar com a cidade, teria que criar uma rede de palavras cidadãs. E foi a partir dessa idéia que nasceu o projeto que consistia em trabalhar com dois eixos educativos centrais:  a interrogação e a surpresa.  

Artistas atentos às ruas do entorno do MACBA, produziam símbolos que as transformasse em surpresas para os cidadãos, que transitando por elas, se interrogassem. E assim ocorreu, os moradores e transeuntes do Raval, ao caminhar por suas ruas, deparavam-se com objetos, imagens e frases poéticas que lhes surpreendiam e lhes provocava interrogações. Muros que estavam destruídos num dia, eram transformados por um artista durante a noite e ao amanhecer estavam convertidos em uma “frase poética” que inquietava seus admiradores. A partir daí, ninguém mais poderia transitar pelas ruas sem pensar no sentido delas e sem percebê-las de forma diferenciada. 

O Raval foi durante algumas semanas um impressionante centro de atividade criativa! Os artistas atuavam como convidados do bairro que gostava de brincar de ser anfitrião. As crianças circulavam livremente entre as mesas dos escritores e os ateliês dos artistas. Movidos pela curiosidade, os transeuntes detinham-se para conversar com os participantes. As pessoas da terceira idade, numerosas aqui na Europa, encontravam novos temas para conversar e novos vínculos com a vida coletiva do bairro. 

A rua foi para o cidade das palavras, o cenário no qual a escola e o museu constataram que têm um espaço comum. Espaço que dignifica a cidade como um lugar no qual a vida humana cresce e enriquece graças ao encontro entre as crianças que nascem, o presente que as acolhe e  a curiosidade acumulada daqueles que já se foram ... 

Com esse projeto tive clareza de que a educação é mesmo produto do toque, do encontro e do contato. E desde então, tenho uma idéia que não me abandona: todas as instituições, não apenas os museus,  precisam estar com suas portas abertas para as crianças e os jovens. As instituições têm funcionado como armazéns, guardam o patrimônio da cidade. Mas, a cidade, para seguir viva, necessita que seus cidadãos tenham acesso a esse patrimônio, para que o transformem em própria bagagem e sigam vivendo.

 

CREARMUNDOS :Você poderia nos comentar sobre outros projetos que têm a cidade como tema? 

Eulàlia Bosch:Vou falar dos dois mais recentes. Temos um projeto europeu chamado Eduarts – as cidades e a capacidade educativa das artes. Nele estão envolvidos profissionais espanhóis, alemães, holandeses e italianos de distintas áreas: arquitetura, artes plásticas, literatura, educação, filosofia, psicologia, cinema de animação e documentários. As cidades envolvidas nesse projeto são: Barcelona, Girona, Berlim, Amsterdã, Bolonha e Milão. O foco dele é a criança como cidadã e sua ambição inicial era iluminar os aspectos da vida cultural urbana que pudessem ser utilizados pela escola como fontes permanentes de recursos educacionais. Trata-se de descobrir na estrutura das cidades, os elementos em torno dos quais se pode introduzir os estudantes nas pautas da contemporaneidade.  

Entendemos que para serem cidadãos com plenos direitos, a criança e o jovem precisam descobrir no emaranhado urbano, os centros de recursos para seu bem-estar e o conhecimento. A escola pode e deve estimular em seus alunos o desejo desse descobrimento. A cidade pode e deve facilitar formas concretas para facilitar e satisfazer esse desejo. Assim, a partir da experiência e dos campos de trabalho dos envolvidos, esse projeto explora a arte na sua capacidade educativa e cidadã. Ou seja, sua capacidade para estimular a criatividade do visitante que descobre uma obra de arte, do leitor que “enfrenta” um novo livro, do transeunte que contempla as fachadas dos edifícios, do espectador que reconhece o encanto da manipulação visual nas  imagens cinematográficas e televisivas. 

O outro projeto no qual estou envolvida chama-se Educália da Fundação La Caixa. Trata-se de uma cidade - rede - artística para crianças, uma web interativa que está em inglês, catalão e  espanhol e pode ser utilizada pelas crianças da escola primária. Baseia-se no uso educativo da internet e na capacidade educativa das artes. Nele, as crianças são sujeitos  criadores de poesia visual que seguem interrogando-se e surpreendendo-se com o tema da cidade. Quem quiser conferir é só entrar no endereço: www.educalia.org, na parte que leva o nome de POESIA VISUAL. 

 

CREARMUNDOS :No seu livro El placer de mirar – el museo del visitante, você se interroga sobre a criatividade do espectador, propõe um “olhar em voz alta” e um diálogo acerca do prazer da contemplação. Você poderia nos explicar melhor essa idéia? 

Eulàlia Bosch:Quando decidimos olhá-las, as obras de arte nos tornam solidariamente humanos, porque são a fonte de confrontação mais rica que o entorno pode nos oferecer. Por mais que a procedência de uma obra seja remota, nunca poderá nos resultar completamente estranha se decidimos olhá-la de verdade. Isso porque ela é sempre o resultado de alguém que se interroga acerca do porquê das coisas que são como são e acerca de como poderiam ser. 

De maneira geral o espectador é visto como um paciente de hospital – passivo. E, os artistas no museu são os que atuam, assim como o que ocorre com os médicos num hospital. Penso que toda boa obra artística tem seu mistério e isso desperta a criatividade do espectador, porque gera interrogação. E, para tanto não é necessário que alguém tenha estudado a história da arte. Interrogando, o espectador “olha em voz alta” – atua, aprende a ver as coisas em profundidade.  

Na contemplação, o espectador começa uma história privada com a obra que é difícil de ser traduzida em palavras. Mas, se quem cria a obra, fala, dialoga com quem a vê, a linguagem torna-se um elo e a distância entre eles diminui. Construir um diálogo é útil na contemplação artística até que não se sente mais a necessidade de falar e só resta o silêncio. Falar em voz alta é o caminho entre a surpresa inicial e o silêncio final! 

 

CREARMUNDOS :De que maneira as escolas podem colaborar para uma educação mais criativa? 

Eulàlia Bosch:Sempre penso que a escola é um espaço físico e imaginário no qual as pessoas que estão ali compartilham perguntas, preocupações, alegrias e dores. E entendo o mundo humano movimentando-se como o universo: contraindo e expandindo! Portanto, se escola quer colaborar com o desenvolvimento criativo das crianças e jovens, ela precisa ajudá-los a tramar uma rede compreensiva dos fenômenos humanos, naturais e culturais. Para tanto, ela tem que ser um ambiente protetor, conhecido, familiar e amável. Ao lado disso ela tem que inquietar os alunos, surpreendê-los e provocar neles o nascimento das perguntas.

Para permitir que seus alunos sejam criativos, a escola tem que recuperar sua proteção maternal, de tal forma que os estímulos possam entrar e sair sem que os alunos percebam isso de forma brusca.

 

CREARMUNDOS :Levando em consideração que você é educadora e escritora, poderia nos dizer como vê a relação educar X escrever? 

Eulàlia Bosch:Escrever é auto - educar-se. É enfrentar o desafio de ver o próprio interior frente a si mesmo. E isso pode ser trágico ou pode nos causar vontade de rir de nós mesmos. Em geral, escrever nos conduz de um lado ao outro.

Temos muitos segredos, e muitas vezes, saem no papel, coisas insólitas que nos surpreendem. É impressionante esse caráter reflexivo da escrita: é um dizer a si mesmo as próprias coisas! O mais surpreendente é começar pensando que tudo está claro e descobrir no meio do caminho o quanto está obscuro... Escrever é bom até mesmo quando é ruim!

Escrever é o conteúdo, mas tem muito de habilidade manual, inclusive com os computadores, que nos dão uma perspectiva plástica do texto.

Escrever é um jogo com muitos recursos e tem a vantagem de veicular nossas idéias. É como falar ao telefone e desenhar ao mesmo tempo...

 

CREARMUNDOS : Você gostaria de deixar alguma mensagem especial para nossos leitores? 

Eulàlia Bosch: Gostaria de lembrar os movimentos do universo: sístole e diástole. As crianças têm que entrar e sair na escola, assim como seus professores precisam contrair e expandir. Está equivocada aquela idéia de que um bom professor é aquele que vive a escola 24 horas; e que participa de inúmeros cursos de formação. Tudo na cidade educa! Tanto professores quanto alunos têm que viver o cinema, a praia, o clube, os encontros com os amigos, etc. Para se educar, é preciso ter uma vida extra – escolar que seja importante. Penso que não existe melhor formação de professores do que ter uma boa qualidade de vida! Não acredito mais em tantos cursos, se o professor não vive a vida na cidade onde está e onde estão seus alunos. Toda mãe alimenta seus filhos com aquilo que gosta! O educador precisa ver a cidade como um alimento próprio e saboroso, só assim ele poderá disfrutar desse alimento com seus alunos. Isso é algo além dos muros da sala – de - aula... 

CREARMUNDOS : O site agradece a receptividade e a simpatia de nossa entrevistada que, com certeza, irá inspirar muitos de nossos leitores, que como ela compreendem que viver, educar e educar-se são sinônimos!