MUNDOS REFLEXIONADOS  

EDUCACIÓN  

COTAS PARA AFRODESCENDENTE NAS UNIVERSIDADES. POR QUÊ?

Rosália Estelita Diogo
Professora e Jornalista. Membro do Conselho Municipal de Educação de Belo Horizonte

estelitadiogo@bol.com.br

“O  importante não é o que fizeram  do homem, mas  o que ele faz, do  que fizeram dele".  
J. Paul Sartre

Neste momento, vários amigos, conhecidos e colegas de trabalho me perguntam se a defesa de cotas para negros na universidade ou em repartições públicas, de acordo com algumas iniciativas governamentais, não seria defesa de privilégios. Indagam ainda, se tais iniciativas não significam aceitar, ou reafirmar, a incompetência intelectual do negro. E por fim, questionam se o correto não seria política favorável a todos os segmentos mais pobres do país.  

Tento responder a estas questões com a tranqüilidade que me é possível pelas minhas experiências pessoais e pela trajetória familiar. Penso que é a melhor forma de legitimar a minha convicta posição. Em um segundo momento, proponho teorizar aspectos relacionados ao preconceito, relacionando-os a auto-estima das pessoas. E por fim, apresento estatísticas, que possam confirmar as minhas experiências.  

Sou uma mulher negra que nasceu no interior do Estado. Em uma família de onze irmãos, sou a segunda que concluiu o curso superior. A maioria dos meus irmãos alcançou somente o ensino fundamental. Saíram da escola para ingressarem no mercado de trabalho, antes de quinze anos de idade, e não deram conta de conciliar os estudos.  O meu pai não possui escolaridade, ou como preferem alguns, é analfabeto. A minha mãe teve uma escolaridade elementar, rural, pois foi onde nasceu. Sou professora, com formação de magistério, nível médio.  

O meu percurso acadêmico efetivou-se através do curso superior, Comunicação Social (Jornalismo), no período de 1987 a1991. A demora em ingressar na faculdade não foi por falta de tentativa, mas por ausência de recursos financeiros para sustentar uma faculdade privada.  Pois, para me inserir em uma universidade pública, disputei várias vezes com candidatos em melhores condições de escolaridade, pois freqüentavam cursos preparatórios, o que eu não poderia estar fazendo, na condição de arrimo de família.

Éramos quatro negros em uma turma de 25 alunos, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte, hoje, UNI-BH. O Curso ampliou significativamente a minha leitura de mundo, na medida em que passei a ler sociólogos, psicólogos e filósofos que faziam uma reflexão sobre o que motivava as ações do homem no mundo. Reafirmo então, a necessidade que vejo, de que a escolaridade na vida das pessoas é de fundamental importância. Principalmente, para os historicamente segregados.  

As leituras que muito me marcaram na época de faculdade foram a de teóricos como Marcuse, Marx e Sartre. O ponto central da descoberta era o de negação dos princípios estabelecidos por uma cultura hegemônica na perspectiva de poder referendar outras culturas. Outro pensamento refletido era o de que o  estado de coisas, aparentemente dado, poderia ser alterado em função de interesses de outros grupos que conseguissem se organizar para contrapor a ele Seguramente essas leituras contribuíram para minha formação pessoal enquanto contestadoras de uma ordem  social preestabelecida.  

O ano de 1988, comemoração dos 100 anos de abolição, me alcançou nesse momento  particular de reflexão. As comemorações foram gigantescas, os protestos também. A contraposição dos movimentos negros organizados era a de que  os negros saíram da senzala para a periferia, para a favela; porque a contemporaneidade  assim formatava a sociedade,  era a divisão natural entre os abastados e os não abastados. As condições de desconforto e desigualdade permaneciam. Como o afrodescendente faria  para alcançar um outro lugar na sociedade nacional, que não fosse o de periférico?  

Em meu percurso como educadora, defrontei-me com várias situações de alunos que são excluídos de uma relação igualitária com seus colegas pelo fato de serem negros. Situações também experimentadas por mim, na infância e adolescência, dentro e fora da escola. Tive a oportunidade de estar à frente da direção de uma escola municipal e a partir daí, desenvolver projetos visando inserir na ordem do dia a discussão da discriminação e estratégias para reduzi-la. Esses projetos envolviam a comunidade escolar da periferia da cidade, onde estava inserida a escola. Empiricamente, detectamos que a maioria daquela população era negra. 

Hoje, trabalho em uma escola, com alunos moradores de  vila, em sua maioria negros, que têm também, uma trajetória familiar, segundo relatos, marcada pela não oferta de melhores oportunidades na sociedade.Trabalho ainda, como formadora, no Curso de Formação de Educadoras da Infância. Nossas educandas lidam com crianças de 0 a 6 anos,  nas creches conveniadas com a prefeitura de Belo Horizonte. Tentamos perceber juntas, os dilemas enfrentados pelas crianças negras desde o seu nascimento, na condição de “diferente”, na medida em que os referenciais reconhecidos pela estética no Brasil, são norteados pelo padrão europeu.  

 Os relatórios clínicos de psicólogos para os quais encaminhávamos essas crianças, falavam de “ crise de identidade”. Diziam que os nossos alunos/as não queriam ter a cor que tinham, pois estavam sendo rejeitados pelos colegas.

 Ficamos a pensar então, no alerta de GOFFMAN (1982),  no sentido de que os estigmatizados tentam evitar contatos com os “normais”, numa relação social, ou respondem a situações tensas, através de comportamentos que expressem agressividade ou defesa.  

Em sua obra “O mal-estar na civilização” (1929), Freud desenvolve o argumento de que “alguns homens não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão”. Por acreditar que o estigma e o preconceito abalam a autoconfiança que o indivíduo possa ter em si, este pensamento contribui sobremaneira com as minhas formulações. O negro no Brasil, ao meu ver,  passa por um processo de discriminação e preconceito de tal ordem que na maioria das vezes, seus atributos e qualidades não chegam a ser considerados. Um exemplo claro, dentre tantos outros, são pesquisas aplicadas por órgãos, como IBGE e IPEA, evidenciando que a comunidade afro-descendente se encontra mais desempregada e/ou subempregada, bem como, desescolarizada, em relação ao branco.  

Na mesma obra, Freud argumenta que o “sofrimento nos ameaça em nossos relacionamentos com os outros homens e que sob a pressão das possibilidades de sofrimento, os homens se acostumam a moderar suas reivindicações de felicidade”.

Entendemos que a validação da cultura, do modo de vida, e dos direitos do afro-descendente é que vai lhes conferir a condição de igualdade social. Parece-me crucial então, que indivíduos negros tenham clareza que suas diferenças devem ser respeitadas.  Para mi, essa é uma das condições para que o indivíduo negro e a comunidade a qual tem pertencimento, possam ter condições de alcançar a felicidade, pensada por Freud, nas relações sociais.  

[v1] Não podemos ainda, deixar de dialogar com HALL(1999), quando este discute a representação social  e a identidade _ a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mais de uma falta de inteireza que é preenchida, a partir de nosso exterior, pelas formas  com as quais nos imaginamos ser vistos pelos outros. E ainda que “a identidade tem relação com as formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”.  

Penso que o estigma negativo e o preconceito abalam a autoconfiança que o indivíduo possa ter em si. Entendo, portanto, que a validação dos seus direitos e da sua cultura, é que  vão conferir a condição de igualdade social. Me parece crucial que os indivíduos negros busquem o reconhecimento das suas diferenças, como valores que não são iguais, mais devem ser respeitáveis. Considero que o objetivo não deva ser sobrepor uma cultura, ou interesses a outros e sim, uma relação dialógica e respeitosa entre essas culturas.

Acredito que o acesso a melhor escolaridade é que permitirá ao afrodescendente, uma melhor percepção do seu lugar no mundo, e  a criação de eventuais estratégias, visando minorar, ou quiçá, progressivamente, finalizar os  empecilhos, que o colocam em condição inferior ao branco. É nessa linha, que faço a defesa de cotas para negros na universidade, compreendendo tal iniciativa, como sendo parte de ações afirmativas. Para que esse segmento da população possa se apropriar de conhecimentos científicos e teóricos, acumulados historicamente na sociedade. E que esses conhecimentos adquiridos, permitam a eles, interferir, efetivamente no curso da história da humanidade. Que não permaneça na condição de assistente, submisso ou  maior penalizado pelas agruras  pelas quais passa a sociedade.  

Utilizo-me de pesquisas, para tentar confirmar a assimetria presente nas relações sociais no Brasil, no que se refere aos afrodescendentes. O coordenador nacional da pesquisa de discriminação racial do IPEA, Ricardo Henriques, reuniu dados do IBGE de 1999 e comprovou que na última década do século vinte, não se alterou a distância entre as raças. O IPEA descobriu que jovens negros permanecem em média, 2,3 anos a menos na escola que os brancos. Segundo o pesquisador, “O jovem negro de 25 anos vai levar pelo menos 20 anos para alcançar o branco e recuperar o tempo perdido”.  

Segundo a mesma pesquisa, no país, 70% das pessoas consideradas miseráveis são negras. Apenas 2% dos negros conseguem  entrar na universidade e sete em cada dez negros não completam o ensino fundamental. Devemos levar em conta, que o Brasil possui a maior população negra no mundo, ficando  depois da Nigéria, África.  

 Não é possível tratarmos como iguais, a quem é desigual. As condições de vida do negro,  encontram se inferiores em relação ao branco. Essa constatação não é minha, e sim das estatísticas. Faz-se necessário então, a partir das evidências, uma discriminação positiva, no sentido de incluir a população negra nas universidades, para que ela tenha oportunidade   de construir melhores  condições  de vida para si e para os seus  descendentes, invertendo portanto, a lógica que se apresenta até então.  

Negar  a política de ação afirmativa, através de cotas no serviço público ou na universidade, significa, ao meu ver compactuar com a idéia do  mito da democracia racial, que impera no Brasil,  encobrindo injustiças e desigualdades de toda ordem.  

Devemos, rejeitar a idéia de benesses do Estado ou paternalismo para com o afrodescendente, e reafirmar a noção de política de reparação dos prejuízos causados historicamente à população negra. Penso que a política de cotas, deva ser um processo transitório, para que em um futuro, não tão próximo, já que as distâncias são muito grandes; possamos abandonar essa estratégia e relacionarmos em condições mais igualitárias, frente à sociedade nacional.  

Quando falamos de distância entre o ideal e  o real, para que possamos tentar equacionar o problema , podemos citar ainda, os dados da pesquisa, em relação  a  crianças adolescentes e jovens negros. Segundo os estudos, 65% das crianças negras são pobres. Entre os brancos na faixa etária  entre os 7 e 14 anos, 33% são pobres, e entre os negros, 61% estão nessa condição. Dos 15 aos 24 anos, a diferença é mais que o dobro __ 22% dos brancos e 47% dos negros são pobres.  

Em relação  a cotas no serviço público, penso que é um debate que se faz necessário, quando falamos das representações sociais. O negro deve participar das tomadas de decisões que são construídas em espaços institucionais, na medida em que elas vão ser aplicadas também para ele. Estudos dos movimentos negros organizados, apontam que a população negra constitui cerca de 50% da população brasileira; como então ficar de fora da elaboração de políticas públicas, como não representar seus interesses, ou tê-los representados? Já  que as iniciativas do setor privado são tímidas, o serviço público ao meu ver, tem essa obrigação.  

Por fim, quero louvar a iniciativa do projeto de lei do deputado Paulo Paim, que prevê uma cota para negros em novelas, filmes, peças teatrais e publicidade. Penso que tal iniciativa dialoga com Stuart Hall, quando este fala da formação identitária. Da necessidade de sermos vistos e reconhecidos pelo outro, no nosso processo de validação social. É de extrema importância, ao meu ver a maneira como o negro é visto, para que possamos formular e reformular conceitos e estereótipos negativos,  construídos a cerca do negro no Brasil.

Referências bibliográficas  

BERGER, Peter & Luckman, Thomas. A Construção social da realidade. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes: 1987: (Antropologia, 1).  

CIAMPA, Antônio da Costa. In Codo Wanderley & Lane, Sílvia T. M. (orgs) Psicologia Social – O homem em movimento. São Paulo: editora brasiliense, 1984.  

FARR.M. Representações Sociais: A teoria e sua história. Em GUARESCHI, P. e  

JOVCHELOVITCH, S. Textos em Representações Sociais. Petrópolis: Vozes. 1994.  

FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização” (1929).In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1974.  

GOFFMAN, Erwin. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.  

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.  Rio de Janeiro: DP&A, 1999.  

SARTRE, Jean Paul. “O existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correia Guedes. São Paulo,Abril Cultural,1974. Col.. Os Pensadores.

SCHERER-WARREN, Ilse. Cidadania sem fronteiras: ações coletivas na era da globalização. São Paulo: Hucitec, 1999.